O Inferno

Autor desconhecido, O Inferno, século XVI.Óleo sobre madeira de carvalho, 119X217.5 cm.Museu Nacional de Arte AntigaDe autor desconhecido. É uma pintura a óleo em suporte de madeira de carvalho. Proveniente de Convento extinto em 1834. Esta pintura …

Autor desconhecido, O Inferno, século XVI.

Óleo sobre madeira de carvalho, 119X217.5 cm.

Museu Nacional de Arte Antiga

De autor desconhecido. É uma pintura a óleo em suporte de madeira de carvalho. Proveniente de Convento extinto em 1834. Esta pintura foi já atribuída, por vários historiadores, a Jorge Afonso ou ao Mestre da Lourinhã. Apontamos para outras geografias. Seguramente obra do início do século XVI e dado os materiais e técnicas utilizadas, a modelação formal e estética das figuras, na representação da perspectiva aérea (colocando o observador num ponto de vista superior), assim como toda a iconografia apresentada parece-nos mais próximas da pintura flamenga[*] da altura (transição do século XV/XVI).


[*] Muitos pintores, discípulos e seguidores, inspiravam-se, ou copiavam, os grandes mestres da pintura flamenga dada a crescente procura e popularidade das suas obras. O rei Filipe II (Filipe I de Portugal) guardava no seu acervo 30 obras de Bosch.

A carga apologética que a pintura “O Inferno” veicula, deverá ser lida numa perspectiva temporal (entre o início da Idade Média até ao Renascimento) onde o dialéctica moralista termina quase sempre num “Juízo final”. Fruto das novas organizações políticas resultante da queda do Império Romano as práticas e comportamentos sociais ancestrais, decorrentes de condutas pagãs, foram vistas como ameaça à coesão social e ao poder evangélico da Igreja Católica. Assim, o corpo e a sexualidade foram considerados como factores de desagregação da célula comunitária: a família. Esta preocupação não é nova. Poderíamos evocar o decreto do senado romano senatus consultum de Bacchanalibus[1] (186 a.C.) a proibir os Bacanais (festividades), ou, ainda, Santo Agostinho (354 d.C. a 430 d.C.), um dos principais doutores da igreja, desvalorizando o corpo: “sede de tentações, da animalidade e do pecado”. A sexualidade permanecerá associada ao sentimento de culpa, de pecado, e ficará ligado sempre à mulher. Procedente da herança greco-romana e do mito de Pandora[2], potenciado pelo pecado original da Eva (judaísmo/cristianismo), a mulher transformou-se numa ameaça à alma passando a ser um distrate ao exercício da razão. Assim, na Idade Média a mulher está intimamente ligada quer ao mal, quer ao erotismo, e será o elo entre a sensualidade e o mundo mágico. A mulher medieval passou, então, a habitar este espaço de desejo e de condenação. 

A importância dada à coesão social, por parte da Igreja Católica, fez com que passasse a condenar com maior veemência comportamentos ligados ao maior dos “sete pecados mortais”: a Luxúria. Os outros pecados (Gula, Avareza, Preguiça – Ira, Inveja e a Soberba) foram hierarquizados segundo o género e a importância social; os primeiros assacados aos homens e os últimos às mulheres. Paralelamente, numa época assolada por várias calamidades como a fome, a peste negra, as guerras, reforçaram o temor; o temor divino. Não admira que a figura do Inferno e do Diabo ganhe um potencial moralizador nos indivíduos, nas famílias, nas sociedades e, por último, nas comunidades, através do medo. Nas artes o Medo ganha corpo, um corpo imagético através do risível; na literatura é a figura do Louco[3] (e a loucura) que ganha protagonismo; e na música (as letras e a poesia) foi introduzida a sátira de mãos dadas com os prazeres mundanos, que o codex buranus[4] é o principal exemplo conhecido. É toda uma imagética que se desenvolve em torno do Grotesco, do Louco e da Mulher, onde toda a cultura medievo ocidental assenta, dando ênfase, segundo Bakhtin, “nas partes do corpo em que ele se abre para o mundo exterior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz[5]”. É toda uma iconografia de índole erótico/pornográfico que se desenvolve na ornamentação escultórica (nomeadamente nos cachorrões) de algumas igrejas românicas; é no grotesco presente nas ilustrações (iluminuras) e gravuras dos livros; é no absurdo, no fantástico, no imaginário, que a pintura apresenta numa desarmonia do gosto (disgusto) ganhando acuidade na provocação do riso, do espanto, do horror e da repulsa. As pinturas como a doHieronymus Bosch e Pieter Brueguel enquadram-se dentro realismo grotesco popular, que rompe barreiras, que não é perfeito, que ultrapassa os limites, tornando-se “uma radiografia do real, desconstruindo as representações ideais, apresentando o conflito entre a cultura e a corporalidade[6]”. É uma realidade tornada verosímil, tão real e credível que o inferno passou a existir com todos os seus seres saídos do imaginário humano. É partindo destes pressupostos que olhamos para o nosso quadro, o Inferno, exposto no MNAA.

No centro do quadro um caldeirão cheio de frades, identificados pelo tipo “tonsura[7]”, deixa-nos apreensivos quanto ao destinatário a censurar. Frades franciscanos? Talvez os Goliardos (clerici vagantes) egressos das comunidades religiosas. Estes Goliardos, Frades vagabundos, de espírito transgressivo e provocador frequentavam as tavernas onde declamavam os seus poemas satíricos, denunciando os abusos da própria igreja, ou poemas eróticos bastantes ousados. Os seus dotes de oratória eram convincentes, principalmente quando dava lugar ao festim (ver: in taberna quando sumus: Carmina Burana). Talvez sejam os principais visados nesta condenação... e no Inferno (pintura) o mal está concentrado num espaço escuro, inventariado, e exibido num espectáculo de tortura quase teatral. Vários seres demoníacos habitam este espaço de castigo e tortura. Contámos oito, entre os quais dois são femininos: quiçá, os súcubos, muito populares na Idade Média, que atacavam os homens durante os seus sonhos para a prática de sexo. Os restantes demónios, os íncubos, que são geralmente descritos, na literatura medieval, como seres baixos, peludos e com rosto, por vezes, de animal. Estas figuras ganham destaque e importância iconográfica no contexto pictórico.

Deixemo-nos perder pelo olhar: três jovens penduradas de cabeça para baixo deixam a descoberto os longos cabelos afagados pelo fogo há cadência da trompa de um demónio, provavelmente o verdadeiro demónio. Enquanto tiramos algumas notas e realizamos um rápido esboço dos corpos lascivos, interrogamo-nos: será que tais personagens aparecem só para censurar o corpo e, por conseguinte, levar estes pecadores à condenação? Não. A leitura feita por qualquer humilde católico causticado pelos instintos sexuais, ligando a carne ¾ corpo ¾ não passa de ensinamentos recebidos pela Igreja que mais não fez do que exacerbar o pecado por intermédio da culpa. Um sentimento de culpa omnipresente testemunhado por um demónio sentado num trono. Sob a sua vigilância atenta, adornado de penas garridas e coroa de plumas, presencia, perversamente, o desenrolar das diversas torturas de uns tantos pecadores. À medida que vão caindo novos penitentes no inferno, por uma forma circular no canto superior direito, um outro demónio, arreado de penas, surge do lado direito carregando outro frade para o caldeirão deixando-nos perplexos em vislumbrar os misteriosos pecados cometidos. Se a figura dos frades ganha uma importância central nesta pintura, ela não deixa de evocar todos os pecados mortais representados por figuras femininas e masculinas que estão a ser torturados por entes demoníacos: o Mal. Assim, no canto superior esquerdo, três mulheres nuas penduradas numa trave, de cabeça para baixo, são queimadas lentamente sobre um fogareiro ateado pelo fole de um demónio, representando, supostamente, a ira, a inveja e a soberba. Sendo estes pecados aqueles que provêm de estados de “alma”, de condenações morais são, a maior parte das vezes, associados às mulheres.

Distribuídos com um superior realismo, encontram-se mais três figuras masculinas nuas, agrilhoadas pelo pescoço, a serem torturados por Demónios, ou figuras femininas demoníacas. Ao lado do fogareiro, objecto de suplício já referido, um Demónio enfia moedas pela boca de um nu masculino deitado; um outro, segurando um fole de carneira, despeja o conteúdo, provavelmente vinho, por um funil que conduzirá à boca do outro pecador; por último, em primeiro plano, um terceiro Demónio tortura um corpo jovem deitado em sentido inverso com a cabeça rapada e reclinada (representando a falta de dignidade e honra, característico dos que nunca se esforçaram) dando-lhe um ar sonolento e adormecido próprio daqueles que nunca experimentaram a incomodidade e o sofrimento. Cada uma delas apresenta na metodologia da tortura notas distintivas dos respectivos pecados que representam: avareza, gula e preguiça que são um dos mais censuráveis por parte da Igreja e estão associadas aos pecados dos homens. 

Há medida que o tempo passa assistimos ao desenlace pecaminoso, no lado oposto (canto inferior direito), destaca-se uma jovem mulher nua, de longos e ondulados cabelos, seios gentis, reclinada sob o cotovelo esquerdo que repousa sobre no peito de um frade, mostrando o seu ócio com o qual se fomenta em grande parte o desejo. Aparece, também, presa pelo braço esquerdo a um homem, o que manifesta a contagiosa libidinosidade desta figura, provocando um aumento e uma excitação da luxúria daquele que lhe está amarrado: o amante. O plano destacado que esta figura assume no conjunto da composição quer pela representação estilística, quer pela interpretação iconográfica, resulta da Luxúria ser incitadora e a via de acesso ao Inferno constituindo a escola onde se aprendem todos os crimes e onde se perdem todas as virtudes. Empurrada por um Demónio (de aparência feminina) a Luxúria aparece como o pior dos pecados (é de salientar que o Nu - Luxúria - aparece substantivamente na composição como o Pecado) aquele que é mais difícil dominar por contraposição aos restantes pecadores representados que, esses sim, por serem encarnações humanas aparecem dominados e castigados por diferentes formas. A Luxúria encarna o desejo desenfreado que leva à destruição e à morte do próprio objecto desejado - domínio dos sentidos sobre a razão. Assim, os pecados sexuais fazem parte do mundo dos rejeitados que muito dificilmente poderiam ascender ao novo além - o Purgatório. O pecado da carne tem o seu território, tanto na terra como no Inferno e, segundo Jacques Le Goff, é “filha do Diabo e limita-se a ser prostituta que Satanás oferece a todos”. O sistema dos sete pecados mortais instaura em última instância a unificação dos pecados da carne que passa a ter um nome - O INFERNO. 

 

 Texto extraído da Tese de Mestrado (Teorias da Arte, FBAUL), 1999

1999-2015 © Luís Carvalho Barreira


[1] Em 186 a.C. o senado romano promulgou um decreto (senatus consultum de Bacchanalibus) a proibir as Bacanais, festividades em rápida propagação que, segundo Tito Lívio (c. 59 a.C. — 17 d.C.), era um culto no qual ocorriam as mais grotescas vulgaridades, bem como todo tipo de crimes e conspirações políticas nas suas sessões nocturnas. O incumprimento deste decreto, do Senado romano, proibindo estas festividades em toda Itália, com a excepção de casos particulares aprovados pelo Senado, levou à perseguição e condenação de muitos dos praticantes. Apesar do castigo ser severo, reservado aos prevaricadores, (segundo, Tito Lívio, houve mais execuções do que encarceramentos) as festas sobreviveram, principalmente, no sul de Itália.

[2] Na concepção grega, Pandora, fora um presente dado aos homens por Zeus, foi a razão de todos os males na terra.

[3] Stultifera Navis (A Nave dos Loucos), de Sebastian Brant. 1494; Navicula stulterum mulierum (1498), de Josse Bade; La Nef des Folles (c. 1500), de Jehan Drouyn

[4] Carmina Burana (Códice séc. XI-XIII). Um manuscrito de 254 poemas e textos dramáticos, datados, em sua maioria, dos séculos XI e XII, sendo alguns do século XIII.  As peças são, em geral, picantes, irreverentes e satíricas.

·     Carmina moralia et satirica (1-55), de caráter satírico e moral;

·     Carmina veris et amoris (56-186), cantos primaveris e de amor;

·     Carmina lusorum et potatorum (187-228), cantos orgiásticos e festivos;

·     Carmina divina, de conteúdo moralístico-sacro (parte que provavelmente foi adicionada já no início do século XIV).

·     Ludi, jogos religiosos.

·     Supplementum, suplemento com diferentes versões dos carmina.

[5] BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no renascimento: O Contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 5 ed. São Paulo: Annablume, 2002. Pag. 23.

[6] SODRÉ, 2002. Pág. 60

[7] De acordo com a Enciclopédia Católica existiam três tipos diferentes, cada um ligado a um apóstolo específico: o romano, ou o de São Pedro, quando a parte de cima da cabeça é raspada deixando apenas um círculo de cabelo em baixo e na frente; o grego, ou de São Paulo, quando toda a cabeça é raspada; o celta, ou de São João, quando apenas uma parte de cabelo é raspada na frente da cabeça.

[1] Muitos pintores, discípulos e seguidores, inspiravam-se, ou copiavam, Bosch dada a crescente procura e popularidade das suas obras. O rei Filipe II guardava no seu acervo 30 obras de Bosch.