Ovo da Páscoa

Ovo, 1985

fotografia de Luís Carvalho Barreira


Muitos dos actuais símbolos ligados à Páscoa não são mais do que resquícios culturais, aglutinações existentes em algumas festividades pagãs ao longo da história da humanidade. Com o aparecimento do cristianismo, muitos desses rituais pagãos da celebração da passagem do Inverno para a Primavera foram adaptados, fundindo-se com a celebração da ressurreição de Cristo: a Páscoa.

Mas, porque costumamos presentear os nossos amigos e familiares com ovos na Páscoa? O que é que eles representam?

Todas estas actividades (rituais, festas, jogos) com ovos têm o seu significado e uma razão de ser, quer pelo seu carácter simbólico, quer pelo seu sinal metafórico. Ao longo de toda a história da humanidade, o Ovo foi sempre reconhecido como símbolo do renascimento, da esperança, da causa primeira, do gérmen, da origem e do princípio. Em suma, o Ovo confina em si o mistério da vida.

No século XVI, Cesare Ripa, no seu tratado de iconologia, descreve a “Fecundidade” (ver imagem) como uma “mulher coroada com folhas de zimbro que com as mãos aperta contra os seus seios um ninho de pintassilgos com os seus filhotes. Segundo Plínio, lib. X, cap. LXIII, o pintassilgo é um dos mais pequenos mas dos mais profícuos animais, pondo de cada vez doze ovos.

A seus pés, uma galinha com os pintos recém-nascidos, saindo de cada ovo. Do outro lado, uma lebre rodeada pelas crias.

O zimbro é a planta que possui sementes capazes de alimentar os animais. Os pintassilgos representam as crias, os filhos; as galinhas, os ovos e os coelhos anunciam a fertilidade, que é a maior bênção que uma mulher pode ter no casamento”. Toda esta imagem iconográfica (Mulher coroada com zimbro, acompanhada de Ovos, Pintassilgos, Coelhos, Galinhas) evidencia a aspiração ancestral do ser humano: o anseio de abastança, o desejo de fertilidade e de fecundidade.

Ancestralmente, certos povos pré-históricos efectuavam diversos rituais, por altura do equinócio da primavera, tendo como propósito nas suas preces o desejo de um ano novo, do renovar da esperança e sobretudo do desejo de abundância e fertilidade. Alguns destes costumes pagãos, apesar de aculturados, chegaram até nós com os mesmos propósitos de então. No Alentejo existe um ritual, em S. Pedro do Corval, onde as mulheres atiravam, e ainda atiram, calhaus rolados (supostamente ovos) para o topo de um aflorado rochoso, denominado “Rocha dos Namorados”, de configuração erecta, saído da terra procurando assim a fertilidade e a fecundidade desejadas. Segundo a tradição, ainda presente, as raparigas solteiras vão à “rocha dos namorados”, na segunda-feira de Páscoa, lançar uma pedra para cima do menhir procurando resposta sobrenatural em matéria do seu enlace: cada lançamento falhado representa mais um ano de espera do seu casamento.

Numa leitura mais atenta aos monumentos megalíticos circundantes, encontramos o Alinhamento ou Cromeleque dos Almendres (estas construções, únicas na Europa ocidental, estendem-se desde Inglaterra até Portugal), um recinto alongado, com cerca de uma centena de menhires, na sua maioria de forma ovoide, que constituiu, por certo, além de uma construção de carácter multifuncional capaz de organizar e estruturar a sociedade envolvente, uma estrutura de carácter religioso envolvendo, supostamente, rituais propiciatórios de fecundidade. Um dos menhires, situado na extremidade norte, exibe três imagens solares radiadas. Tal iconografia corresponde, provavelmente, ao momento final do Neolítico, quando na região se fizeram sentir as primeiras influências culturais das primeiras comunidades da idade dos metais, portadoras de uma nova estrutura religiosa. Esta religiosidade centrada numa divindade feminina, idealizada com grandes olhos solares, assumira-se como a grande deusa local, “ibérica”. Certamente que estas manifestações na Europa ocidental, feitas através de cerimónias de carácter sexual, com libações e outras ofertas corporais, não são alheias a um dos mais importantes rituais em honra de Ishtar, deusa da fertilidade, deusa dos arcádios. Esta divindade, Ishtar, não é mais do que a representação da deusa Inanna, herança dos seus antecessores povos sumérios; cognata da deusa Asterote dos filisteus; da deusa Isis dos egípcios; e da deusa Astarte dos Gregos. Mais tarde esta deusa, Ishtar, foi assumida também na mitologia Nórdica como Easter (Páscoa em Inglês), a deusa da fertilidade e da primavera.

Luís Barreira

Ishtar

British Museum, 2014

Fotografia

arquivo: 08_8477, 2014

No equinócio da primavera, os participantes em honra da deusa da fertilidade Easter pintavam e decoravam ovos escondendo-os em tocas nos campos, na sequência de anteriores práticas já exercitadas pelos Persas, Romanos, Judeus e Arménios.

Mais recentemente, os cristãos na Rússia czarista e a igreja ortodoxa, durante a celebração da Páscoa, tinham e ainda têm como costume, ao beijarem-se, dizer: "Cristo ressuscitou"… e ao mesmo tempo que recebem um presente, proclamavam: "Verdadeiramente, Cristo ressuscitou"…  Assim, quando o Czar Alexandre III encomendou, em 1885, ao célebre artista e ourives Peter Carl Fabergé uma obra de arte para presentear a imperatriz Maria Feodorovna na Páscoa, este criou uma série de ovos encaixáveis contendo no seu interior uma surpresa em ouro, prata e pedras preciosas sublimou artisticamente práticas culturais ancestrais.

Peter Carl Fabergé

Peter Carl Fabergé

Podemos encontrar outros ovos, embora mais modestos, mas também cheios de significado nos povos europeus de origem anglo-saxónica que os pintam escondendo-os nos jardins ou nas casas para que as crianças os possam encontrar. Na Inglaterra os jovens desenvolvem, durante a comemoração da Páscoa, uma actividade curiosa que consiste em fazer rolar os ovos por um plano inclinado até que um deles subsista intacto – o “egg rolling”. Prática semelhante pode ser encontrada na Ucrânia chamada de “KrepaK”, em que grupos de crianças visitam as casas pedindo ovos e depois num jogo/ritual os entrechocam, considerando-se vencedor o ovo cuja casca não se tenha quebrado.

E se o Ovo contém em si o mistério da vida celebremos a entrada da primavera e/ou a ressurreição de Cristo com alegria, com abundância, com fertilidade, com esperança na concretização dos nossos desejos e num futuro melhor.

 

Texto © Luís Barreira, 1991

Pietro Lorenzetti, Lamentação de Cristo (detalhe), 1310-1329FrescoBasilica de Assis, Itáliacréditos: wikipédia

Pietro Lorenzetti, Lamentação de Cristo (detalhe), 1310-1329

Fresco

Basilica de Assis, Itália

créditos: wikipédia

Dia da mãe

"Mãe de Deus" ou "Virgem Maria"

Masolino da Panicale (1383-1447)Madonna dell'umiltà c. 1423

Masolino da Panicale (1383-1447)

Madonna dell'umiltà c. 1423

Há muito que o culto Mariano se institucionalizou entre os católicos. Para ser mais preciso desde o primeiro Concílio de Éfeso onde a “Mãe de Deus”, defendida pelos Nestorianos, passou a ser “Virgem Maria” retirando-lhe o lado humano -mortal. Porém, durante muitos anos (séculos) a Virgem Maria foi representada mais como mãe, e mãe de todos nós, do que de uma santidade se tratasse. O lado humano está presente na dádiva, no aconchego junto ao regaço, no carinho posto no olhar e na gentileza das mãos delicadas protegendo o menino – o filho. Despojada de qualquer bem terreno, Maria cobre a cabeça com um véu ocultando os longos cabelos afastando qualquer olhar concupiscente. Quando olhamos para a “Mãe de Deus” presenciamos as nossas mães…

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Em Roma, na catacumba de Priscila, encontra-se uma pintura quase apagada pelo tempo representando a Virgem Maria amamentando o Menino Jesus no colo. Nesta imagem do século II poderemos ver o profeta Balaão a apontar para uma estrela pintada mais no alto da cabeça da mulher. O menino nu apoiado nos braços da mãe poderá ser a primeira representação da Virgem Maria, conhecida.

Hoje, dia 8 de Dezembro, é marcado por duas celebrações cristãs de significados antagónicos: a evocação popular da Nossa Senhora da Concepção (Conceição) celebrando o arquétipo da maternidade, e a celebração da Nossa Senhora sem Mácula (Imaculada) dogma introduzido no século XII, embora rejeitado por São Tomás de Aquino entre outros teólogos, que foi sustentado e aceite em 1854 pelo Papa Bento XIV.

A Senhora sem mácula é a nossa mãe.

(*o dia da mãe foi durante muito tempo comemorado no dia 8 de dezembro. É tradição montar a árvore de Natal e enfeitar a casa no dia 8 de dezembro, dia de N. Sra. da Conceição)


Texto © Luís Barreira, 1997

 

Goya, La Maja desnuda, 1800

La Maja desnuda de Francisco Goya

Francisco de Goya (1746-1828)Pepita Tudó "La Maja desnuda", 1800Dimensões: 97 cm x 190 cmMaterial: Tinta a óleoLocalização: Museu do PradoCriação: 1797–1800

Francisco de Goya (1746-1828)

Pepita Tudó "La Maja desnuda", 1800

Dimensões: 97 cm x 190 cm

Material: Tinta a óleo

Localização: Museu do Prado

Criação: 1797–1800


Os mistérios de “La Maja desnuda, c.1800” uma “obra menor” no percurso artístico de Francisco Goya?!

 

Goya, aos dezassete anos, transferiu-se para Madrid onde estudou com Anton Raphael Mengs, pintor da corte espanhola. Depois de duas tentativas (1763-66) foi recusada a entrada na academia de Belas Artes. Mais tarde, em 25 de abril de 1785, depois da morte de Carlos III e da coroação de Carlos IV, foi nomeado "Primeiro Pintor da Câmara do Rei", tornando-se o pintor oficial do monarca e da sua família. É com este estatuto que Goya se torna num retratista da corte e da nobreza espanhola acompanhando o gosto do academicismo vigente. Goya realizou inúmeros retratos e, entre muitos, destacamos o da figura de Manuel Godoy representado, ao jeito neoclássico, como vencedor da “Guerra das laranjas” entre espanhóis e portugueses sem que tivesse grande oposição por parte dos seus beligerantes.

Manuel Godoy retratado por Goya, 1801

Manuel Godoy retratado por Goya, 1801

Quem foi Manuel Godoy?

Manuel Godoy foi primeiro-ministro de Carlos IV, Rei de Espanha. Durante as invasões francesas as suas posições dúbias tornaram-no no joguete de Napoleão acalentando a ideia de poder ser príncipe do sul de Portugal (Alentejo e Algarve), promessa feita por parte de Napoleão Bonaparte no Tratado de Fontainebleau (secreto, 1807).

A ascensão de Manuel Godoy na corte espanhola deveu-se muito ao romance que manteve com Maria Luísa de Parma, esposa de Carlos IV.

Godoy casou-se com Maria Teresa de Borbón y Villabriga, 1797 e divorciaram-se em 1808. Todavia, manteve um relacionamento escaldante com a andaluza Pepita Tudó (1779-1869) de 17 anos com quem viria a casar depois da morte de sua mulher. Feita condessa de Castillofiel, Pepita Tudó terá sido a modelo de La Maja desnuda de Goya (Tese defendida por Robert Hughes no livro Goya, 2003).

 

Mas como é que podemos enquadrar a pintura erótica de La Maja desnuda (única no percurso artístico de Goya) no movimento romântico?

A decadência das monarquias absolutistas – Ancien Régime – promovera o lado hedonista e intimista da nobreza europeia. O culto artístico no final do Barroco (O Rococó) era de um naturalismo erótico, muitas das vezes camuflados em histórias mitológicas. Os desejos dos seus promotores alicerçados na futilidade das suas ações, dos encontros amorosos e na sensualidade de uma vida ociosa, eram o enquadramento da sociedade nobre e burguesa do final do século XVIII. Assim, a encomenda feita de Manuel Godoy a Goya de um nu deitado enquadra-se no espírito da arte do Rococó onde os “Boucher’s”, os “Fragonard’s”, tinham lugar de destaque nos aposentos dos seus encomendadores.

La Maja desnuda… e mais tarde La Maja vestida serviram de ostentação privada na galeria do seu ministério a par de outras obras que Godoy tinha no seu gabinete. Segundo relato de Gonzalez de Sepúlveda (referência tirada da página do Museu do Prado), possuía «vários quadros que poderiam ser observados: Vénus ao espelho de Velasquez, Vénus de Ticiano e uma (vénus) de Goya».

Ticiano, Vénus de Urbino, 1538Velasquez, Vénus ao espelho, 1648Goya, Maja desnuda, 1800

Ticiano, Vénus de Urbino, 1538

Velasquez, Vénus ao espelho, 1648

Goya, Maja desnuda, 1800

Esta obra de Goya, La Maja desnuda, (que inicialmente deu pelo nome de Gitana, conforme descrito no inventário do palácio Godoy) ultrapassou todos os limites representativos do nu, do belo clássico enquanto metáfora do ideal de beleza. O nu de La Maja desnuda é carnal, é concupiscente, oferece-se ao observador deixando a descoberto todo o corpo nos seus mais íntimos detalhes. É provocante e ao mesmo tempo vulnerável. Não obstante, a nudez de La Maja não se esconde atrás de nenhuma divindade, é identificável, tem nome: Pepita Tudó. A vulnerabilidade da amante levou Manuel Godoy a encomendar outra pintura a Goya, La Maja vestida, com as mesmas dimensões, quiçá, para colocar no verso da primeira e assim poder alternar/ocultar a menos conveniente.

Esta pintura utiliza uma paleta de cores tonais contrastada pelo claro/escuro aqui reforçado pela ausência de outros elementos formais que possam alterar a dinâmica da composição. Um fundo quase monocromático intensifica a vulnerabilidade do nu reclinado com as mãos atrás da cabeça. Ao realismo retratado do nu, incluindo as zonas erógenas (nunca antes realizado), é contraposto uma maior expressividade dada ao tratamento do drapeado, do canapé e dos tecidos envolventes. Pinceladas rápidas, sobrepostas, confere-lhe alguma modernidade plástica afastando a pintura de Goya do neoclassicismo e do romantismo da época.

“La Maja Desnuda” pintada ainda antes de 1800 tornar-se-á na pintura mais controversa no universo artístico de Goya arrastando, ainda hoje, milhares de pessoas ao Museu do Prado, em Madrid, onde está exposta desde 1901.

A genialidade de Goya.

Goya, depois de abandonar a Academia de Belas Artes, após críticas à instituição de coartar a liberdade criativa dos artistas, refugia-se na “Quinta do Surdo”, a casa de campo que adquiriu em 1819, onde pintou as mais escuras e misteriosas pinturas.

Uma doença grave (1792) e as invasões napoleónicas deixaram um Goya revoltado com a ganância de alguns; amargurado com o desrespeito pelo sofrimento dos mais desfavorecidos; indignado com os comportamentos insanos dos seres humanos. Assim, entre os anos de 1810 e 1814, produziu a sua “obra maior”, começada com uma série de gravuras (Los Desastres de la Guerra) e desenvolvida numa pintura denunciando os horrores da guerra.

Estas pinturas utilizando cores fortes, contrastes herdados do barroco (claro/escuro), pinceladas rápidas em velaturas energicamente sobrepostas conferem expressão e dramaticidade às figuras reveladas: olhares desesperados, gritos, rostos disformes, gestos que traduzem, não só um imaginário, mas o mal-estar do autor com a realidade social espanhola. “Os fuzilamentos de três de Maio, 1808” será, talvez, a obra icónica conferindo à pintura de Goya uma modernidade dentro do contexto do movimento romântico. Goya experimenta uma linguagem plástica de índole expressionista (já abordada, de certa maneira, em El Greco e em Rembrandt) e depois prosseguida por William Turner acabando por ser assumida pelos movimentos expressionistas no período de transição do século XIX/XX.



Texto de Luís Barreira ©2005-2017

Artemisia Gentileschi

Artemisia Gentileschi (Roma, 1593 – Nápoles, 1653)Judith e a sua Serva (1613-14)Óleo s/telaPalazzo Pitti, Florence

Artemisia Gentileschi (Roma, 1593 – Nápoles, 1653)

Judith e a sua Serva (1613-14)

Óleo s/tela

Palazzo Pitti, Florence

Os estádios (os direitos humanos na sua plenitude) em que se encontra a Mulher nos mais diversos cantos do mundo permitem que ainda se fale num dia internacional da mulher. Neste dia internacional da mulher (8 de Março) deverá, sobretudo, discutir-se o papel da mulher na sociedade assim como o seu contributo, ou a falta dele.

Inúmeras mulheres poderiam ser recordadas, enaltecidas, pelos seus feitos, pelo sofrimento ou pela humilhação infringida, neste dia. A minha singela homenagem sintetizada em Artemisia Gentileschi a primeira mulher a entrar para a Academia de Arte de Florença.

Nota: texto publicado em ethos no dia 8 de março 2012